Eu não sei quanto a vocês, mas sempre tive curiosidade quanto à infertilidade na história, principalmente em relação aos relatos bíblicos. Eu queria saber sobre como as mulheres se portavam frente a esse fato ao longo dos séculos, principalmente nas épocas em que a reprodução era um fator social tão importante na vida das famílias. Em uma dessas minhas buscas por fatos, deparei-me com um artigo muito interessante da colega jornalista Hideíde Torres. Ela gentilmente permitiu que eu o reproduzisse aqui no blog. Espero que gostem.
Artigo escrito por: Hideíde Brito Torres, Bacharel em Teologia e em Comunicação
Social pela Universidade Metodista de São Paulo, escritora, jornalista e
pastora da IM em Cataguases, MG, 4ª. Região
"Vários textos bíblicos definem a família
abençoada, caracterizando-a, acima de tudo, pela existência de herdeiros. Isso
se deve ao contexto cultural da época. Os filhos, especialmente os do sexo
masculino, estavam ligados à manutenção das propriedades da família (em geral,
apenas os homens herdavam os bens, porque as mulheres, ao se casarem, iam para
outra família ou tribo ou eram legalmente inaptas para receber heranças). Outro
fator relevante para essa prática era que a mulher herdava o nome do marido e não
o do pai. Assim, com o tempo, temia-se que o nome de uma família desaparecesse
se não houvesse herdeiros homens.
Nesta lógica, em contrapartida, a
ausência de filhos era igualmente interpretada como uma espécie de “maldição”
ou de “peso da mão divina”, especialmente sobre a mulher(1). Narrativas que
trazem essa mensagem de um modo peculiar são o episódio de Abraão e Sara junto
ao rei Abimeleque (Gn 20.17-18) e o de Mical, filha de Saul, que nunca teve
filhos, uma espécie de castigo de Deus por ter desprezado seu escolhido, Davi
(2Sm 6.20-23). Oséias profetiza que o castigo de Deus sobre os povos inclui
“ventre estéril e seios secos” (9.15).
Na Bíblia, a esterilidade é um problema
feminino. A mulher era vista como uma espécie de "terra" na qual o
homem depositava sua "semente" (2). Como mesmo homens estéreis têm
emissão de sêmen, ainda que não haja espermatozoides, é fácil compreender que
pensassem assim. Com os avanços médicos e científicos atuais, sabemos que tanto
homens como mulheres podem ter problemas de saúde que gerem esterilidade.
Assim, a chegada de um filho era uma alegria para a família e um “alívio” para
a mãe, que se sentia, enfim, segura na estrutura familiar (3).
Na verdade, a síntese de bênção, no
contexto da família do Antigo Testamento, tem mais a ver com a quantidade de
filhos existentes do que, propriamente, se a relação era boa! Havia muitos
conflitos entre filhos, bem como entre os cônjuges, mas desde que houvesse
crianças na casa, tudo estaria bem...
Traumas familiares ocasionados pela
esterilidade
O primeiro e mais evidente trauma da esterilidade, no contexto
bíblico, é o sentimento de inferiorização experimentado pela mulher. Nem mesmo
o amor do marido a salvava da aflição. É o que mostra a história de Ana (1Sm
1.1-28). Existe uma conotação social, é claro, mas também de pessoalidade. Ana
chega a demonstrar sinais de depressão: chora muito, não se alimenta, nem se
alegra (1Sm 1.8). Temos nesse relato a autêntica preocupação do esposo, que a
ama e sofre por sua infelicidade. Este fato não costuma transparecer em outros
textos similares. Jacó mesmo se aborrece pela “cobrança” de sua mulher, Raquel
(Gn 30.2). Abraão sequer questiona Sara a respeito da promessa divina. Ele toma
a escrava Agar e a possui, em busca do filho que nunca vem (Gn 16.1-2).
Shigeyuki Nakanose afirma: “uma mulher sem filho não tinha herança. Estava
condenada ao abandono, à exclusão. [No contexto bíblico] a libertação deste
terrível futuro dependia de Javé, do templo e dos sacerdotes”(4).
No mundo patriarcal, o marido poderia
tomar outras esposas e concubinas. Assim, as mulheres estéreis colocavam-se em
maior fragilidade. Surge outro trauma familiar: a competição entre as esposas (5).
Vemos isso nos relatos de Raquel/Lia (Gn 30), Ana/Penina (1Sm1), Sara/Agar
(Gn16).
A competição é tão acirrada que as
mulheres envolvidas não podem controlá-la, a ponto de todos os outros valores,
incluindo o bem-estar e a união familiar, serem obscurecidos pela disputa. As
mulheres continuam a discutir e a se desentender até darem à luz. Elas não
conseguem sentir segurança pessoal, mesmo gozando de uma posição elevada na
família, a menos que concebam.(6)
E, como ter um filho apenas não bastava,
pois a quantidade também indicava a bênção de Deus sobre a família, essas
mulheres se arriscavam a outro trauma, este irremediável: a morte. Existem
algumas narrativas bíblicas sobre as mulheres que morrem ao dar à luz, o que
mostra a fragilidade da vida humana naquele contexto. Era preciso um tempo para
que o corpo se recuperasse do processo gestacional e, algumas vezes, isso era
posto de lado em nome da necessidade de gerar filhos. Assim, Raquel morre ao
dar à luz seu segundo filho (Gn 35.16-17). A severidade para a mulher é tão
grande que a parteira quase lhe diz que sua morte não tinha tamanha importância:
“Não temas, pois ainda terás este filho” (v.17).
Sentido da palavra bíblica “estéril”
Na
Bíblia Hebraica, a palavra “estéril” é ‘aqar' É a mesma raiz de descendente.
Apenas as vogais se alteram, demonstrando a proximidade dos sentidos. Ao mesmo
tempo, a raiz é a mesma também para designar “infecundo", "impotente",
"desenraizado”. Expressa, portanto, conteúdos sociológicos existentes na
sociedade do Antigo Israel. A esterilidade torna a pessoa sem poder e sem raiz,
sem identidade no meio do povo. Trata-se de um estado de alienação, de
separação, de exclusão. A violência presente no termo é tão forte que em suas
declinações, a palavra assume os sentidos de arrancar, desarraigar, ser
arrancado e desjarretar. Essa última palavra significa cortar os tendões e
ligamentos das pernas e é o que se fazia aos cavalos dos inimigos, nos tempos
de guerra, para inutilizá-los (7). No conceito, nota-se a força da carga
emocional que o problema acarretava (8).
Esperança
bíblica da família da fé
Apesar da brutalidade gerada pela
esterilidade na sociedade patriarcal, a ausência de filhos não é a última
palavra na caminhada do povo de Deus. A bênção é uma possibilidade sempre
aberta, é o interesse último de Deus na vida de seus amados.
Um exemplo
clássico transparece no Salmo 113.7-9, em que a dignidade da vida humana é
recuperada pelo próprio Deus: ele faz o pobre assentar-se ao lado de príncipes
e “faz a estéril sentar-se em sua casa, como alegre mãe de filhos” (9).
Arthur Weiser, ao comentar este salmo,
faz um resumo da esperança que a Palavra de Deus apresenta a todos os seres que
são ou se sentem excluídos:
O fato de Deus acolher a mulher sem
direitos porque sem filhos, conceder-lhe o direito de ficar na casa e dar-lhe a
bênção dos filhos, mostra que a graça de Deus supera o direito humano; e o fato
de que faz da estéril mãe também revela o prodígio do seu poder. Na entrega
alegre à soberania de Deus e na confiante certeza de sua graça esconde-se uma
força para a fé simples, que foi capaz de suportar aflições, opressão,
rebaixamento e injustiça sem desmoronar sob toda essa carga.(10)
O sentimento de inferioridade assombra
muitos casais que não podem ter filhos. A infertilidade causa grande dor
pessoal. Para as mulheres, dá um sentido de incompletude, de falibilidade. Para
os homens, tem a ver com sua própria masculinidade, já que muitos problemas de
fertilidade são confundidos com impotência sexual, fator que muito os humilha
nos moldes da sociedade atual. Essa situação gera graves conflitos, podendo pôr
fim a muitos relacionamentos, pois a auto-estima repercute diretamente na
estima do outro, da outra. A Igreja deve exercer uma pastoral terapêutica e
amorosa nesta direção.
Mesmo que a nossa sociedade atual e
ocidental não permita a competição no estilo poligâmico, a verdade é que, de
alguma forma, casais que não podem ter filhos se sentem como perdedores no jogo
da vida. Sentem-se diminuídos frente a outros casais, constrangidos com as
notícias de gravidezes e bebês, exilados de festas infantis e comemorações
familiares. Para complicar, a pressão social existente é grande. O sofrimento
desses casais, para evitar os olhares condoídos ou as expressões ferinas (ainda
que não intencionais) passa a ser privado, oculto e muito mais enraizado. Na
pastoral da família, este é um assunto do âmbito privado e assim deve ser
tratado, com muito respeito pelas vidas envolvidas e seus sentimentos (11).
O caminho é longo e, em alguns casos,
pode dar num beco sem saída. Quando não conseguem superar tal dificuldade, os
casais veem seu relacionamento correr riscos.
O primeiro passo, que em geral os casais
fazem inteiramente sozinhos, é assumir o problema. Encarar é muito difícil. As
pessoas têm de deixar sua privacidade para expor-se diante de médicos,
psicólogos, conselheiros. Tratamentos de fertilização em geral envolvem
procedimentos médicos dolorosos e, por vezes, constrangedores.
As técnicas
modernas de reprodução assistida ainda não são acessíveis a todos. É possível
obtê-las gratuitamente, é verdade, mas esse processo é demorado. Trata-se de
enfrentar filas, de aguardar encaminhamentos... Os centros que oferecem tais
tratamentos em geral se localizam em grandes capitais, dificultando o acesso de
quem tem poucos recursos ou mora distante desses locais. Quando possuem os
recursos, os casais precisam ainda precisam enfrentar o trauma do insucesso.
Cada tentativa frustrada, dizem, é como um aborto. E nem sempre é possível ter
o fôlego financeiro de tentar novamente. Além disso, diminuem as chances de
sucesso.
Vita Alligood afirma:
Um casal eventualmente
resolverá o problema da infertilidade de alguma destas três maneiras:
1) Eles
eventualmente (sic) conceberão um bebê.
2) Eles vão parar com os tratamentos
de infertilidade e decidir viver uma vida sem filhos. 3) Eles encontrarão uma
alternativa para ser pais, como a adoção. Chegar a uma solução pode levar anos (12)".
Referências:
1)
Sobre isso, é interessante verificar a quantidade de vezes que aparecem na
Bíblia expressões tais como: “o Senhor lhe fechou a madre” (1Sm1.5); “Deus me
impediu de ter filhos” (Gn 16.2); “seu marido orou por ela ao Senhor, porque
era estéril” (Gn 25.21); “Vendo o Senhor que Lia era desprezada, fê-la fecunda;
Raquel era estéril” (Gn 29.31); “Deus impediu teu ventre de frutificar” (Gn
30.2); “lembrando-se dela o Senhor” (1Sm 1.19).
2)
Esperma vem do latim sperma, e este do grego spérma (semente). A palavra sêmen
vem do latim semens (semente). De fato, o líquido no qual se movem os
espermatozóides (palavra que significa: em formato de semente) não é, em si, o
gerador da vida, mas esse conhecimento, obviamente, faltava aos povos antigos
quando do surgimento dos termos.
3)
Por conta dessa insegurança, vemos os extremos a que algumas mulheres foram
forçadas a chegar, para garantir sua prole. Tamar, nora de Judá, disfarçou-se
de prostituta e dormiu com o sogro (Gn 38); as filhas de Ló conceberam do
próprio pai – uma das mais controvertidas narrativas do Antigo Testamento (Gn
19.30-38)!
4)
NAKANOSE, Shigeyuki. “Javé fechou o útero”. In: VVAA. Criança na Bíblia. Petrópolis:
Vozes, 1997 (Revista Estudos Bíblicos, 54), p.38.
5)
Sobre essa competição, é interessante ler BRENNER, Athalya. A mulher israelita:
papel social e modelo literário na narrativa bíblica. São Paulo: Paulinas,
2001, p.133-142.
6)
BRENNER, Athalya. A mulher israelita, p.138.
7)
SCHOKEL, Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus,
1997
8)
Sobre este tema, ver: SCHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia
Hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004
9)
Tradução de WEISER, Arthur. Os salmos. São Paulo: Paulus, 1994 (Grande
Comentário Bíblico), p.546.
10)
WEISER, Arthur. Os salmos, p.548-549.
11)
Sobre isso, leia CASTRO, Sandra Andrade. Quando anseio por um filho. São Paulo:
Cedro, 2006. A autora narra sua trajetória conjugal na busca por um filho. De
modo comovente, ela aponta suas lutas e oferece pistas do que pode ser uma
pastoral da família voltada a casais com problemas para ter filhos.
12)
http://www.amigasdoparto.org.br/ce_corpo_03_03.asp
Outras fontes
consultadas:
Bíblia
Sagrada (tradução revista e atualizada de João Ferreira de Almeida). 2.ed.
Barueri, SBB, 1993.
BRENNER,
Athalya. A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa
bíblica. São Paulo: Paulinas, 2001.
CASTRO,
Sandra Andrade de. Quando anseio por um filho. São Paulo: Cedro, 2006 (Série
Quando).
SCHOKEL,
Luis Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997.
SCHWARTS,
Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica. São Paulo: -Associação
Editorial Humanitas, 2004.
VVAA.
Criança na Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1997 (Revista Estudos Bíblicos, 54).
WEISER,
Arthur. Os salmos. São Paulo: Paulus, 1994 (Grande Comentário Bíblico).
Internet:
-
http://revistacriativa.globo.com/Criativa/0,19125,ETT397952-2246,00.html
-
http://www.amigasdoparto.org.br/ce_corpo_03_03.asp.
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